Texto de
Pedro Rolo Duarte:
“Um homem e a sua revolução”
Há analogias felizes. Esta é uma delas: Carlos do Carmo está para a música portuguesa como o 25 de Abril de 1974 está para Portugal. Não tomem por exagero o paralelo: antes de Carlos do Carmo, o fado era conservador, reaccionário, fechado e sem saída à vista. Como o país. Depois de Carlos do Carmo, o fado abriu-se ao mundo e a si próprio, ganhou dimensão e profundidade, vida e liberdade. Como Portugal.
Quando começou a cantar, Carlos foi de mansinho inovando, abanando a modorra da canção, em passos sem medo, mas com corrimão por perto. Até à “invenção do dia claro”, como disse o poeta. Eu era miúdo e não me esqueço de ver o meu pai a entrar em casa e dizer: “Acabei de ouvir. O Carlos do Carmo tem um disco que vai mudar a face do fado e da música portuguesa”. Era a sua revolução, chamava-se “Um Homem na Cidade”. O meu pai tinha razão. Carlos rompeu todas as barreiras que separavam o fado do pais entretanto acordado para a liberdade. E dando à canção rédea livre, soltando-lhe amarras e iluminando-a, contribuiu para que se tornasse unânime, como a democracia; incontornável, como a liberdade; apaixonante, como a construção de um pais novo.
Pelo caminho, houve tempo e espaço para tropeções e hesitações, incompreensões e até ódios – mas também nessa matéria Carlos do Carmo foi o 25 de Abril da música: despertou controvérsia até ganhar estatuto incontestável de instituição nacional.
Ao fim de meio século, a instituição teria tendência a calcificar, adormecer, sentar-se à sombra das conquistas? Teria. Porém, uma vez mais, Carlos do Carmo acompanha Portugal, e onde antes havia revolução, há permanente renovação: quando o querem transformar em dado adquirido, ele ousa fazer-se acompanhar de Maria João Pires, cantar com Rui Veloso ou reinventar-se com Bernardo Sassetti.
As revoluções nunca morrem enquanto o seu espírito as mantiver despertas e sensíveis. Carlos do Carmo sabe tão bem que assim é, que se dá ao luxo de alimentar a sua revolução interior a golpes de génio e criatividade.
Se, ao fim de 50 anos, isto não é o melhor que um cantor pode ter, não sei o que poderá ser. Ou talvez saiba: o próximo disco, a próxima ousadia, a próxima conquista desta revolução permanente.