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Reportagem | «A Bunch of Meninos» dos Dead Combo no Coliseu
Os Dead Combo apresentaram na passada sexta-feira no no Coliseu dos Recreios – 21 de Março-, o novo disco «A Bunch of Meninos».

dead combo

Os Dead Combo apresentaram A Bunch Of Meninos aos lisboetas na sua sala de estar: O palco. O resto fica lá fora, do palco. Silêncio, que se vai tocar o fado… e mais qualquer coisa…
Ao entrar na sala percebia-se que não era um Coliseu qualquer. Sala estranha, pequena e vestida de negro. O palco bem perto ladeado de quadros antigos, quase sem graça, daquelas telas que meia Lisboa tem a decorar as paredes. A meio, entre guitarras e amplificadores, temos um altar digno do Día de muertos mexicano, cuja figura central é um megafone. Presta-se homenagem à palavra, que a dupla sentenciou com pena capital no início de actividade. Flores, muitas e vermelhas, completam o quadro. E se está tudo sentado, desçam-se as luzes que os músicos têm de entrar. Um de cada vez… na penumbra… quase não entram: surgem.

Povo Que Cais Descalço nasce de entre pregões, apitos de amolador, queixume. O baixo assemelha-se a passos de um vilão em filme de terror que se aproxima na nossa direcção. As fotos emolduradas na tela sabem à Lisboa popular, musa dos Dead Combo.

Reportagem - Dead Combo no ColiseuEspera-se pelo Nick (Waiting for Nick) ao som de passos de fado na calçada. Passos de quem desce lenta e desapaixonadamente. Em tom desconexo, as pontas das cordas da guitarra de Tó Trips são como patas de uma aranha que ataca furiosamente uma presa imaginária à medida que a guitarra é sacudida pelas convulsões da música. Trips agradece a presença e revela-se um anfitrião cuidadoso. Apresentando as músicas sempre que necessário. “A próxima é o sonho de qualquer adolescente no liceu: Miúdas e Motas!”. E o Tango é convidado pelo Surf Rock para dançar. Ou como o video na tela sugere, uma miúda a dançar pole dance na sombra… É só na sombra, em contornos, porque o objectivo não é inundar a imaginação. Apenas guiá-la no que terá sido a musa inspiradora. E não havendo miúdos sem cowboys, não há seguramente cowboys sem Eastwood. Não foi por acaso que o ecrã se decorou de negro. É que o Sr. Eastwood era descrito só pela música. As cordas chegam para descrever o pó do deserto a sujar o heroi. As estrelinhas dos calcanhares, fazem-se sentir a cada tempo da música assim como o trote do cavalo a roçar os cascos nas cordas. Há uma pausa suficientemente rápida para Tó Trips girar a guitarra e a apoiar de cordas na perna. Assim as costas da guitarra fazem de mesa da taberna na qual é posta uma moeda a girar! O acto ensaiado merece-lhes o maior aplauso da noite até então! O publico gosta do que vê, mas principalmente do que ouve!

Hora de Pedro Gonçalves quase assumir o protagonismo. Com os Dead Combo, protagonismo e protagonistas nunca são sinónimos ou palavras da mesma família. Já os alter-egos contam estórias diferentes. Sejam estes os fatos ou os instrumentos. Uns passos atrás, e Gonçalves com uma calma tímida mas senhorial, põe-se agora de pé com um teclado de sopro. Começa Waits. A luz do candeeiro ilumina o protagonista (o teclado) e somente meia silhueta da cara do alter-ego. É proibido desviar a atenção. Tó Trips arranca violentamente acorde ritmados da guitarra. Hora de trocar de papeis, o teclado acompanha, a guitarra sola a lembrar-nos que mesmo em português, ela é filha do Rock. Acaba a música, tocam as palmas. Rodada mantém as posições e o teclado divide-se entre notas e reco-reco.

Segue-se Pacheco. O homem da cartola explica que Pacheco era o dedicado guitarrista de Ermínia Silva. Estamos agora no labirinto da Alice, do outro lado do espelho, e a qualquer momento podemos dar de caras com o coelho, o Johny Depp, Hannibal Lector ou o próprio Pacheco. Mr Snowden’s Dream leva-nos novamente a um filme de terror. Nosferatu é o filme, as mãos sombrias que roubam o coração da donzela, são a cena. A jovem protagonista como que acordada de um pesadelo que continua já depois de abrir os olhos. A cena repete com a mesma cadência que a música se vai repetindo também. Pedro Gonçalves continua a dar vida ao cenário. Desta vez ocupa um mini-cravo. Ainda assim o candeeiro que ilumina as teclas fala a mesma língua do primeiro: De Gonçalves, só a meia silhueta!

Tó Trips toma de novo a palavra, para nos explicar a musa da nona música do alinhamento da noite: “A Dona Emília é uma grande amiga que trabalha na Zé dos Bois, e que tem uma paciência de santa. É um ícone do Bairro Altro e uma senhora que põe aquela malta toda na ordem!”. Palmeiras na tela, Surf Rock dança o corridinho e ainda assim cheira a Lisboa. Porque a pedalada da Dona Emília não é para meninos. Rodam as guitarras, mantêm-se as palmeiras, agora em cor de filtro de Instagram, quase a soar a insípido. Cachupa Man vai acelerando o ritmo, mas  o volume não se deixa ultrapassar. Os inúmeros círculos desenhados pelo chapéu de Trips não são suficientes para perder o equilíbrio, mas estar ainda sentado também ajuda. Mais um record de aplausos ultrapassado.

“Arraia, de Arraia miúda” traz de volta as molduras à tela, desta vez com pequenos clips de Lisboa entre varinas, placas com nomes de ruas e becos, elevadores públicos, roupa estendida a mostrar a cidade viva, ainda que numa memória a sépia. Pedro Gonçalves dança agora no contrabaixo. “Rumbero é uma marca de rum de um conhecido café em Lisboa… O rum é tão bom, que só o vendem aos turistas!” anunciou a ironia do anfitrião. “A próxima música chama-se Lusitânia Playboys, e conta a história de dois músicos da velha guarda do Hot Club que decidem ir passar uma noite aos velhos tempos do  Cais do Sodré. E por entre bebida e umas paixões com as meninas, acabam a noite à chapada com dois marinheiros.” Gonçalves marca os passos dos Playboys às pancadinhas no contrabaixo enquanto não marca as notas nas cordas. Trips esqueceu-se de contar que no final da história de pancadaria havia tiros, por isso nada como os emular na guitarra: aponta-se para o longe, as pancadas no corpo da guitarra e deslizar pelas cordas do braço fazem a sonoplastia de uma arma de fogo. Mais um grande aplauso.

Terminada a vida boémia, “a malta vai ficando mais velha, casando e aparecem os filhos. Por isso decidimos fazer umas músicas para as nossas filhas. São as próximas duas.” O momento marcadamente pessoal põe propositadamente o palco a preto para os protagonistas passarem a um canto. Zoe Llorando é uma música de embalar a dizer “Dorme bem minha pequenina!”. Em Welcome Simone, dá-se as boas vindas à Lua que vai aparecendo na tela negra. A plateia banha-se numa noite de verão de lua grande, cheia e quente. No meu jardim de verão oiço a Simone a perguntar-me “Pai, porque é que a lua não é toda branca e tem umas manchinhas mais escuras?”. Ainda no jardim respondo-lhe  “Porque se fosse toda branca, era perfeita demais para ser bonita!”.

Reportagem - Dead Combo - ColiseuFindo o momento intimista, hora de regressar ao cenário original. Esse Olhar Que Era Só Teu, composta originalmente para “Amália Remix” de Bruno de Almeida, trata-se de um fado cantado em guitarra eléctrica. “Electrica Cadente é um Western no Bairro Alto” introduz Trips. É uma das primeiras meio experimental. E para desvendar a experiência que estava a ser vivida, especialmente para os mais distraídos, cai o pano de fundo do palco e revela a sala do coliseu completamente vazia por entre fumos e luzes. O palco tornou-se na estranhamente confortável sala estar dos Dead Combo. O “truque” agrada às coxias que batem novo record de palmas. Uma quase aventura no México dá origem a Dos Rios. As luzes do coliseu apressam-se a apresentar-nos, agora com detalhe, a sala de espectáculos vazia! O espectáculo é tão icónico que depressa as mini-telas aparecem no ar a registar o momento para a posteridade! Não é todos os dias que se vê o coliseu do ponto de vista dos artistas! E com os artistas no palco ao mesmo tempo.

Antes da música que dá nome ao álbum, A Bunch of Meninos, foi a vez de Pedro Gonçalves usar da palavra para fazer os agradecimentos com comoção na voz e lágrima por detrás dos óculos escuros. Segue a música, acende-se o altar, o público vai atrás em final épico. Dona Emília entra em cena durante a ovação e entrega aos músicos o ramo de flores que faltava ao altar!

Impossível alguém arredar pé nem palmas enquanto os músicos não regressassem. Mesmo ensaiado o encore era pedido. Voltam as silhuetas e mete-se a ficha para uma volta nos carrinhos de uma feira popular. Era Malibu Fair. Novo agradecimento. E ninguém perdoaria à dupla se não tocasse a música que lhes dá nome ao ADN: Lisboa Mulata. Como os próprios se descrevem, a sua música tem Lisboa lá dentro. Lisboa Mulata desabrocha aplausos, dança, trauteados em apoteose lisboeta. Guardou-se o melhor para o fim. A saída é rápida! Que o que é bom é para se recordar sem mexer nem estragar, e ainda temos de tirar uma fotografia ao palco ou ao altar antes de sair. Todos querem uma recordação da caveira lá em casa.

Texto: José da Gama
Fotos: Luís Gama

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