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Reportagem | Sérgio Godinho numa noite de velhas canções em novos territórios

No Grande Auditório do Centro Cultural de Belém a expectativa sentia-se alta, estava prestes a começar a materialização fonética do livro de crónicas de Sérgio Godinho “40 Caríssimas Canções – Sérgio Godinho e As Canções dos Outros”. Na sala, esgotadíssima, ouvia-se o burburinho constante das vozes que ferviam de interesse para assistir ao espectáculo.

O concerto é o cumprir de uma promessa do cantor portuense, de partilhar estas canções que o inspiram, que o movem, que fazem parte das suas memórias cantantes na forma em que estas foram concebidas – pela música. E começa com uma canção sua, “A última sessão”, passando célere às canções da sua vida, cantadas com o peso da vida que estas carregam, com a leviandade e a alegria que trazem nas suas notas.

“People are strange” dos Doors e “Love minus zero/No limit” de Bob Dylan abrem o caminho para uma noite musicalmente enriquecedora, comprovando como diz Sérgio a certa altura, que “pisar territórios estranhos é também fazê-los nossos”. Ficamos com a sensação de que, afinal, é mesmo verdade o velho ditado: “quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto”. E os pontos que Sérgio coloca nestas canções que lhe são tão caras são executados com mestria.

Voltamos ao português e à sua riqueza linguística. Viajamos a um Brasil com sotaque português, “Sampa” do brilhante Caetano Veloso, e ouvimos a “Conversa de Botequim”, de Noel Rosa, em português do Brasil, Sérgio Godinho pedindo uma “meia” em sotaque carioca. “Vendaval” comove o público em redor, a sua história de amor sofrida interpretada de forma impecável num registo surpreendente. Sérgio não resiste a imitar Tony de Matos e a sua dicção característica no final da canção “E sei que ninguém mais rirá de mim!”. “Geni e o Zepelim”, do mestre Chico Buarque, prende-nos na sua agressividade; é uma versão poderosa, dolorosa até.

O amor (ou mesmo desamor) é tema constante destas canções, e o lirismo de “Volver a los 17”, de Violeta Parra, é o rosto perfeito destes desencantos. “O Rapaz da Camisola Verde” de Frei Hermano da Câmara, “Heartbreak Hotel” de Elvis Presley, “You’ve got to hide your love away” dos Beatles, “Carinhoso” de Pixinguinha, marcam também presença nesta esfera eclética de canções de uma vida.

“Os Vampiros” dispensa apresentação. A re-interpretação é fenomenal, e sentimos na voz de Sérgio a actualidade das palavras em jeito de grito de guerra: “Os Vampiros/ Eles comem tudo/ E não deixam nada”. Pinta-se o palco de vermelho, e a luz é forte, crua, incitando a uma revolução de ideais, incitando ao fim da apatia.

Aliás, todo o concerto é feito de forma intencional, a iluminação, a estética, a composição cénica, sempre a acompanhar o conteúdo das caríssimas canções – nada foi deixado de parte neste palco do CCB. “Os Vampiros” é só um exemplo: os raios de sol iluminam-nos em “Sous le soleil exactement”, somos banhados pela luz do entardecer em “Sunny afternoon”.

Não é só música que escutamos – lemos palavras, vemos através delas e da cor que nos trazem – é uma experiência multi-sensorial. Ouvimos palavras de ruptura, de desânimo, ouvimos contentamento e desespero em partes iguais. Ouvimos a crítica latente, e não é só na voz de Zeca; “Mother’s Little Helper” dos Rolling Stones e “Sunny Afternoon” dos Kinks são terrivelmente mordazes e sarcásticas.

A língua francesa também está presente em palco. Serge Gainsbourg (“Sous le soleil exactement”) é cantando em tom suave, e Jacques Brel era afinal o dono da página caída, esquecida no palco, à espera que a sua história fosse cantada em “Les vieux”. O seu génio é maravilhosamente interpretado por Sérgio.

“Em dias consecutivos” relembra-nos a perda de Bernardo Sasseti e, como diz Godinho, “sentimos que ele está naquela sala connosco”; é uma dor doce, mas esta versão traz consigo uma nova dimensão.  “Eu contigo”, na sua métrica típica deste cantor/poeta revolucionário fecha o concerto, e foi mesmo “bem bom, bem bom”.

O encore é esperado depois do Grande Auditório aplaudir de pé, e com ele vem uma interpretação de “Ora vejam lá” (Conjunto António Mafra) diferente, surpreendente, à boa maneira de Sérgio Godinho. O concerto fecha com uma caríssima canção sua, “O Acesso Bloqueado”, lembrando-nos de como é difícil viver no presente, como é tão mais fácil viver do que já passou, ou do que há-de vir um dia.

Os músicos Nuno Rafael e Hélder Gonçalves acompanham-no na perfeição; Manuela Azevedo, a vocalista dos Clã, dá muito mais que apoio vocal a este espectáculo, e até a flauta de bisel tem um lugar marcado neste arranjo musical pouco comum. Nas palavras de Sérgio, “uma versão tem de ser uma outra forma de acto criativo”, e é mesmo isso que acontece ao longo da noite – um novo fôlego, de uma criatividade e beleza imensas, trazidos pelos quatro criadores em palco.

No final fica a vontade que “Caríssimas Canções” pudesse ser registado para a posterioridade – a nova vida que estas ganharam merecia ser imortalizada; mereciam ser ouvidas muitas vezes mais. Damos, de facto, carta branca a Sérgio Godinho – e que venham mais quarenta caríssimas canções.

Texto: Carolina Libório
Fotografias: Ana Marques
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